The Healing
Antes dissipava o tempo com gosto e sobretudo sem culpa. Parecia-me tão natural como o arrepio ondulante que as carícias da brisa fluvial provocavam no rio da terra onde cresci. Apreciava particularmente os dias de férias em que os meus pais trabalhavam e o dia era só meu. Quando socializava, aproveitava para trocar as BD re-re-lidas por novas, trocar dicas sobre como passar alguns níveis do Prince of Persia ou gastar moedas a jogar Pang no cafezito mais obscuro da altura. Não eram más as tardes a gargalhar e conversar no telhado, inventar letras de música e entoá-las para gravar em K7 e finalmente lanchar batidos estapafúrdios.
Às vezes, no entanto, apetecia-me hibernar, murar-me do mundo, ficar só comigo. Pelava-me por uma tarde soalheira embrenhada na sombra da mata que o cartão rosa-pálido de sócio nº 482 da Biblioteca Municipal me proporcionava. Aprendi a conhecer a alma que me habitava pela impressão que me provocavam as letras impressas nas páginas amareladas.
Às vezes, no entanto, apetecia-me hibernar, murar-me do mundo, ficar só comigo. Pelava-me por uma tarde soalheira embrenhada na sombra da mata que o cartão rosa-pálido de sócio nº 482 da Biblioteca Municipal me proporcionava. Aprendi a conhecer a alma que me habitava pela impressão que me provocavam as letras impressas nas páginas amareladas.
Mais tarde, noutra dimensão, recuperava das mazelas inflingidas pelo dia-a-dia, embrenhando-me numa mata real em que percorria os trilhos estreitos entre a vegetação até deixar de ouvir o barulho longínquo dos veículos motorizados. Carregava uma mochila de dúvidas e angústias que acabava por ser vorazmente consumida pela cadência do arfar dos meus bons amigos canídeos articulada com a crepitação da vegetação sob os meus passos. Regressava horas mais tarde renovada e centrada, era o meu pequeno santuário, suponho.
Durante os últimos anos perdi o hábito, nunca há tempo... o desmaio inanimada no sofá ao fim do dia é o primeiro (embora frequentemente inevitável) passo para a perda da memória da identidade. Há uma semana voltei temporariamente (mas cujo limite temporal exacto desconheço) para o refúgio ameno da minha infância. É confortável e envolvente, claro. Mas essa sensação de cura, para a qual antes precisava de isolamento, já não a encontro nos livros ou nas caminhadas, só tornei a encontrá-la, meu querido, no compasso das conversas relaxadas de férias contigo.
ana_is