anotações de uma cultura acelerada

Etno-chic

Era como se estivesse no andar de cima. Uma casa velha com madeira a completar a pedra e juntas que agudizavam os sons mais inquietos da natureza humana. Chiar, ranger, estalar, prenunciando o movimento de ultrapassar as portas, os passos sobre o soalho, o encosto na ombreira. A autoridade antes do autor, o destino que precede a fé, o som seguido da fúria. Mr Rain perdoaria com certeza a ilusão e um temperamento impaciente, gasto pelo desuso, exasperado com intrusos e abrigo em pavilhões multiusos. O interior, a fauna da terra, as sementes espalhadas no chão como pó, a divisão escurecida pela gelosia que encerrava a janela da sala - apenas uma meia dúzia oblíqua de feixes de luz perpetravam a casa. As mesmas frestas por onde espreitava o desbaste e o espaço entre as árvores. "Vê-se tudo parado" rumorejava, "anda aí o Desdouro, Mr Rain" insinuava muito mais do que afirmava, o efeito do murmúrio combinado com a pretensão de alastrar a voz por um espaço finito.
Era como se fosse o dia de abrir a casa, no início do Verão, quando Mr Rain tirava um molho de chaves da gaveta e dizia "amanhã passas pelo ribeiradio e arejas a casa. E fazes uma limpeza assim por alto". "Mr Rain, desculpe-me o atrevimento mas anda aí o Desdouro, como sabe". Mas era pior, muito pior, súbito e súbdito, vendo tudo parado, sentindo tudo contra-ordenado, resistindo ao orgulho, subsistindo à altivez. E subsistindo às declamações intermináveis de versos piedosos com epílogos funestos, "Ignomínia, ignomínia!", "Absalom, Absalom!", danças rústicas e fantasias de entrudo, os movimentos esquecidos durante quadragésima. Receava por ter tão pouca luz, hesitando ao descer as escadas, pressentindo falhas no sobrado e as farpas no corrimão, imaginando a dor da estilha no braço. Pensava no destino que precede a fé, "Hey mr Rain, a autoridade adianta-se ao autor?", mas concluía "Se cair, que seja com força, para passar os féretros e deixar de ver tudo parado".
Cá fora uma roda de mulheres repetia a ladainha "...de Alto d'Ouro sob o Desdouro, de rojo pelos barrancos, a resvalar por córregos cheios..."

Blog de Pedro Lago

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