anotações de uma cultura acelerada

Artur Shamrock e Lucinda Sans-Script (3)

Era melhor telefonar; retirar-se para o cubículo da fotocopiadora e carregar na tecla verde do telemóvel. Com uma expressão resignada, no fundo sabia que todos sabiam que ia fazer uma chamadinha, encontrou 3 folhas reproduzíveis numa gaveta por debaixo da secretária, e, num gesto de aborrecimento simulado, levantou-se da cadeira e adiantou-se para o arrumo, also known as cabine telefónica, also known as sala das fotocópias, also known as ultima thule. Ficava contrariado por ter de percorrer o espaço do escritório, atribuindo-lhe noções profanas e dimensões mitológicas. Não gostava de calcar o soalho flutuante durante o horário de trabalho, sentindo-se desconfortável ao transpôr a versão moderna da ilha do minotauro, engendrada por um Daedalus contemporâneo para optimizar recursos e capacidades instaladas, com corredores separados por tabopan, estruturas de aço e secretárias alinhadas com tampos de aglomerado, reluzindo epóxi pigmentado e monitores lcd tft. Cumprimentou os colegas, as workstations e as plantas que enfeitavam os cantos. Recusou um café, respondeu que não podia a um convite para sair à noite e pensou duas vezes no livro que Vrinda tinha no canto da mesa: "The Book of Right On", de uma autora que não conhecia. Cumprido o desiderato, chegado ao Valhala, fechou a porta e procedeu ao merecido telefonema de legítima defesa, para argumentar contra factos, normas comunitárias e direitos conexos de ficar em casa.
Os primeiros instantes da conversa foram indefinidos, vagos, com a dificuldade que sempre sentia em contextualizar uma chamada ao telemóvel. A voz do outro lado era indistinta, amorfa, quase anidiana. Não admirava que as comunicações móveis fossem tão baratas: a compressão da voz era de tal ordem que pouca informação circulava. Devia ficar muita emoção nos filtros das operadoras. Nunca Bell, mesmo nas experiências mais rudimentares, admitiria uma coisa assim; e Marconi tomaria decerto a opção de escrever uma carta.

Blog de Pedro Lago

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